quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Democracia

"Em 13 de dezembro o Ato Institucional n. 5 faz 30 anos.
Buscando uma “autêntica ordem democrática”, um militar, que não fora
eleito pelo povo, revogou o que quis da Constituição vigente. Dizia ter o propósito de assegurar
a liberdade, o respeito à dignidade da pessoa, o combate à corrupção, à subversão e às
ideologias contrárias às tradições do povo… Entretanto, permitiu a suspensão de direitos políticos,
autorizou o confisco, limitou o habeas-corpus, negou garantias constitucionais e impediu
que o Judiciário apreciasse a matéria.
Anos de chumbo vieram: a corrupção não foi vencida, as liberdades
públicas foram cerceadas, o País mergulhou em ditadura da qual só saiu em 1984, quando o
regime militar caiu pelo desgaste e não pelas armas.
Hoje, a liberdade é ampla e o País cresceu sim, mas tanto na riqueza
quanto na miséria. E continua subdesenvolvido, ou, mais adocicadamente, país em desenvolvimento
ou país emergente. Mas seu maior subdesenvolvimento é o cultural, pois ainda o
autoritarismo continua e ainda não se aprendeu a respeitar a ordem constitucional. O presidente
da República legisla hoje por medidas provisórias com a mesma desenvoltura com que então
se expediam decretos-leis.
Hoje não temos mais um militar que rasga a Lei Maior, mas um civil
que trata como privilégios o que uma Constituição democrática garante como direitos, e edita
medidas provisórias para revogar direitos adquiridos.
Sem dúvida, o direito não é imutável. Nem o direito constitucional.
Contudo, a ordem constitucional exige respeito ao direito adquirido. E defender a democracia
não é justificativa para violar a Constituição. Aliás, esse foi o mote do AI 5…
Questionemos até que ponto nossa democracia é legítima.
Democracia é governo da maioria do povo e não a vontade do governante.
O poder político e econômico está concentrado em minoria que freqüentemente defende
seus próprios privilégios. Alguns parlamentares são sempre governistas, seja lá quem for o
governo; outros votam de acordo com seus interesses, não raro em contrariedade com compromissos
partidários e promessas eleitorais. Os interesses de grupos e corporações não raro
1. Artigo publicado em Síntese Jornal, Porto Alegre, dezembro de 1998, pág. 3
prevalecem, e muitas vezes é hipocrisia supor que a lei corresponda ao interesse geral (Judiciário,
Polícia, militares, pecuaristas, empresários, banqueiros, e até mesmo interesses estritamente
individuais têm levado à criação de leis). Além disso, o efetivo acesso à Justiça não é
igual para todos, especialmente para os pobres.
Ainda há outros riscos que viciam uma democracia representativa:
a) as fraudes na escolha dos representantes (a demagogia; o controle do tempo da propaganda
e dos meios de acesso a ela; a dificuldade de conhecer os candidatos; o processo eletivo facilmente
manipulável pelos governantes e pela mídia; a influência das pesquisas de opinião
pública; as reações emocionais da população); b) a deformação do equilíbrio da separação de
poderes (a supremacia do Executivo, ou a invasão de atribuições de um poder pelo outro, como
o Executivo a legislar por medidas provisórias, ou o Judiciário a legislar por meio de súmulas
vinculantes, ou o Legislativo, no exercício do poder constituinte derivado, a suprimir
garantias constitucionais dos outros poderes); c) a ruptura dos princípios de igualdade e liberdade
individual, principalmente em razão da pobreza e da miséria, que viciam as bases de um
Estado democrático.
Uma democracia legítima supõe longo caminho de seu efetivo exercício,
com um sistema que assegure: a) a efetiva divisão do poder; b) mecanismos de freios e
contrapesos na divisão do poder, que funcionem efetivamente e que não possam ser suprimidos;
c) o respeito ao direito das minorias e o reconhecimento e a aceitação de que estas se
podem tornar maiorias; d) o reconhecimento de garantias e direitos individuais e coletivos;
e) o respeito à liberdade, igualdade e dignidade das pessoas; f) a existência de decisões tomadas
direta ou indiretamente pela maioria, respeitados os direitos da minoria; g) a total liberdade
na tomada de decisões fundamentais pelo povo, não conduzidas pelos governantes nem
forjadas pela mídia; h) um sistema eleitoral livre e apto para recolher a vontade dos cidadãos;
i) o efetivo acesso a alimentação, saúde, educação, trabalho, Justiça e demais condições básicas
de vida por parte de todos.
A democracia representativa só funciona adequadamente se houver um
sistema efetivo de partidos, com prévios programas de governo, para que a vontade dos eleitores
não seja burlada. Deveriam ser mais usados o referendo e o plebiscito, sem prejuízo da
possibilidade efetiva de revogação dos mandatos (recall).
Precisamos, enfim, repensar o sistema que permite que um presidente
da República possa ser eleito em primeiro turno, quando, nesse embate, tenha perdido da soma
dos votos em branco, nulos e dos seus adversários."
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• Hugo Nigro Mazzilli é professor de Direito e autor do livro O Ministério Público e o acesso
à Justiça (Saraiva).

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