segunda-feira, 9 de junho de 2014

Bebidas nos copos do mundo!

Elas ajudaram no surgimento da escrita e no desenvolvimento da filosofia, além de motivar guerras e revoluções. Da cerveja à Coca-Cola, as bebidas foram marcantes nos rumos da humanidade

Lia Hama | 01/09/2006 00h00
Idade da Pedra, Idade do Bronze, Idade do Ferro. Essa divisão de períodos históricos foi criada por arqueólogos. Eles se basearam no impacto do uso de cada um desses materiais na vida dos seres humanos ao longo dos tempos. Mas uma outra divisão, um pouco mais fluida, também é possível. Por exemplo: há aproximadamente 5500 anos, quando o Oriente Médio estava entrando na Idade do Bronze, as populações daquela região estavam em plena era da... cerveja.
Dividir a história do mundo em períodos dominados por determinadas bebidas: é isso o que propõe o jornalista inglês Tom Standage, editor da respeitada revista britânica The Economist. No livro História do Mundo em Seis Copos, ele mostra como a cerveja foi decisiva para o desenvolvimento da agricultura e da escrita – ajudando, assim, o homem a sair da Pré-história. Alguns milênios depois, o vinho esteve intimamente ligado ao desenvolvimento da filosofia grega. Até chegar à Coca-Cola e seu papel destacado na globalização que marcou a virada para o século 21, muita coisa aconteceu entre um gole e outro.
“As bebidas tiveram uma conexão com o fluxo da história bem maior do que geralmente se reconhece”, afirma Standage no livro. “Elas sobrevivem em nossas casas como lembranças vivas de eras passadas, testamentos líquidos das forças que moldaram o mundo moderno.” Na opinião do escritor britânico, a bebida do futuro será a água, o que significa que a história das bebidas voltará à sua fonte original. Sendo um recurso natural limitado e fundamental para a vida, muitos estudiosos apontam que a água substituirá o petróleo como a mercadoria escassa com maiores chances de provocar um conflito internacional. “Sua disponibilidade irá determinar o futuro da raça humana na Terra”, diz Standage. Enquanto a era da água não vem, confira como as bebidas ajudaram a trazer a humanidade até aqui.
Cerveja
Se a onipresença das campanhas de cerveja faz você achar que essa bebida nunca foi tão importante, saiba que ela já era fundamental na vida social, religiosa e econômica das antigas civilizações do Egito e da Mesopotâmia. Lá, era usada em cerimônias religiosas, funerais e rituais de fertilidade – os egípcios viam a cerveja como um presente dos deuses, por sua capacidade “mágica” de induzir um estado de consciência alterada.
Para alguns antropólogos, a necessidade de manter a oferta de cerveja teria sido um dos motivos para o desenvolvimento da agricultura. Como a demanda pela bebida era muito grande, não era possível continuar dependendo apenas da coleta de grãos selvagens para produzi-la. Nascia aí a necessidade de plantar e cultivar cereais.
A cerveja também foi decisiva para a origem da escrita, que surgiu para registrar a colheita de grãos e a distribuição de potes da bebida, pães e outras mercadorias. Os primeiros documentos escritos de que se tem notícia são listas salariais e recibos de impostos dos sumérios, nos quais o símbolo para a cerveja é um dos que mais aparecem. No Egito, a bebida era usada como moeda de troca. Os trabalhadores que construíram as pirâmides, por exemplo, eram pagos com pão e cerveja: cada um ganhava três ou quatro bolos de pão e duas canecas contendo cerca de 4 litros da bebida.
Vinho
A filosofia, a política, a ciência e a poesia da Grécia antiga, que até hoje servem de base para o pensamento ocidental, provavelmente não teriam ido tão longe sem o vinho. Era ele que ditava o ritmo nos simpósios, festas em que os participantes partilhavam uma grande taça de vinho diluído. Durante os debates acalorados, os bebedores tentavam superar um ao outro em inteligência. O filósofo grego Platão dizia que o vinho era uma ótima maneira de testar o caráter de um homem, submetendo-o às paixões despertadas pela bebida – como a raiva, o amor e a ambição.
O vinho tornou-se um dos principais produtos de exportação da Grécia antiga. Esse comércio ajudou a espalhar os ideais da civilização grega na região do Mediterrâneo e, mais tarde, no resto do mundo. O costume de beber vinho prosseguiu com os romanos, cuja sociedade hierarquizada se refletia no consumo da bebida. Cada classe social tinha seu vinho. O melhor de todos era o Falerno, feito com vinhas da região do monte de mesmo nome, no sul de Nápoles. Pela qualidade, ia para os imperadores. O pior era o Lora, feito com cascas, sementes e caules da uva, que era servido para os escravos.
Rum e Uísque
O rum foi um dos personagens centrais da independência dos Estados Unidos: entre pagar mais para beber e tentar derrubar o domínio inglês, os americanos ficaram com a segunda opção. Durante o século 18, um dos motivos para o aumento da hostilidade entre a Inglaterra e suas colônias na América do Norte foram os altos impostos que a metrópole cobrava sobre o comércio de melaço de cana, a principal matéria-prima do rum. Em 1781, cinco anos depois que os americanos se libertaram dos ingleses, John Adams, um dos fundadores dos Estados Unidos, escreveu para um amigo: “Não sei por que deveríamos ter vergonha de confessar que o melaço foi um ingrediente essencial na independência. Muitos grandes acontecimentos resultaram de causas muito menores”.
Já outro destilado, o uísque, era parte do dia-a-dia na América do Norte desde antes da independência. Muitos dos colonos americanos eram de origem escocesa ou irlandesa e tinham experiência na destilação de grãos. A bebida era usada como moeda (trocada por sal, açúcar, ferro e pólvora) e consumida em aniversários e funerais. Nos primeiros tempos, a democracia americana, que se tornou referência no mundo todo, era movida a uísque: políticos em campanha distribuíam a bebida aos eleitores.
Café
Abastecidos pela bebida que chegara à Europa no século 17, os cafés públicos de Paris eram ponto de encontro de intelectuais. No século seguinte, tornaram-se centros do revolucionário pensamento iluminista. Por causa disso, viviam cheios de espiões do governo. Qualquer um que falasse contra a monarquia corria o risco de ir para uma masmorra na Bastilha, a prisão que era símbolo do autoritarismo do regime. Tanto esforço de repressão, no entanto, foi em vão. Foi no café de Foy, em 12 de julho de 1789, que um jovem advogado chamado Camille Desmoulins colocou a Revolução Francesa em prática. Ele subiu numa mesa e, com uma pistola na mão, gritou: “Às armas, cidadãos!” Dois dias depois, a Bastilha foi tomada por uma multidão enfurecida.
Em Londres, na mesma época, quem desejava se informar sobre os últimos acontecimentos políticos, as mais novas descobertas científicas ou as fofocas da corte se dirigia a um café. Havia estabelecimentos especializados e divididos segundo a localização. Os próximos ao Palácio de Westminster, a sede do Parlamento britânico, eram freqüentados por políticos. Os que ficavam perto da Catedral de Saint-Paul, por clérigos e teólogos. Já os próximos à Bolsa de Valores atraíam os homens de negócio. Pelo preço de uma xícara da bebida, era possível ler jornais, conversar com outros fregueses ou participar de debates literários ou políticos. Os cafés eram grandes fontes de informação, mas o que se descobria lá nem sempre era confiável – mais ou menos como a internet no dias de hoje.
Chá
No século 18, muitas das rotas comerciais entre a Grã-Bretanha e o Oriente foram traçadas graças à enorme popularidade do chá entre os ingleses. Essa paixão contribuiu para que, naquela época, o Império Britânico chegasse a abranger 20% da superfície mundial. O lucro obtido com esse intercâmbio serviu para financiar o desenvolvimento acelerado das fábricas inglesas. O chá se transformou, assim, na bebida por excelência da Revolução Industrial. Os capitalistas ofereciam a seus empregados intervalos para o consumo da bebida – graças à cafeína, o líquido mantinha os operários acordados nos longos turnos de trabalho braçal.
Mas o chá também causou problemas sérios para a Inglaterra, já que, como o rum, foi um dos pivôs da independência dos Estados Unidos. A reação contra a tentativa britânica de taxar o produto provocou as chamadas “festas do chá”, em que colonos americanos jogavam ao mar carregamentos de chá de navios ingleses. Uma das mais conhecidas foi a Boston Tea Party (“Festa do Chá de Boston”), em 1773, quando agitadores esvaziaram três cargueiros. “Festas” como essa ajudaram a desestabilizar o poder da metrópole.
Depois da derrota na independência americana, o chá levou os ingleses a uma outra guerra, do outro lado do mundo. O consumo do produto na Inglaterra cresceu tanto que o país passou a ter prejuízo no saldo comercial com a China, de quem importava as folhas. Para tentar equilibrar a balança, os ingleses resolveram aumentar a produção de ópio que vendiam para os chineses. A disputa comercial levou à Guerra do Ópio, de 1839 a 1842, vencida pelos britânicos. No fim, os chineses foram forçados a assinar um tratado de paz humilhante, entregando o controle de Hong Kong aos vitoriosos – o território só foi devolvido em 1997.
Coca-Cola
A ascensão dos Estados Unidos e a globalização da guerra, da política, do comércio e das comunicações no século 20 foram acompanhadas pela ascensão da Coca-Cola, considerada símbolo dos valores americanos. Para os que admiram os Estados Unidos, ela significa liberdade de escolha e democracia. Para os que odeiam aquele país, ela representa o capitalismo cruel, a hegemonia das marcas globais e a diluição das culturas numa mediocridade homogeneizada.
A Coca-Cola acompanhou os Estados Unidos em diversos conflitos pelo mundo. Durante a Segunda Guerra, a bebida foi mandada para os campos de batalha, pois fazia os soldados americanos lembrarem-se de casa e ajudava a manter o moral elevado. Tal era sua importância que a empresa foi isenta do racionamento de açúcar imposto em 1942 – a justificativa foi a de que a bebida era essencial para o esforço de guerra. Essa presença no front se mantém até hoje. Quando as tropas norte-americanas ocuparam o palácio do ditador iraquiano Saddam Hussein em Bagdá, em abril de 2003, elas fizeram um churrasco com hambúrgueres, cachorros-quentes e, claro, muita Coca-Cola.
 Por Tom Standage

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